A Felicidade, os Números e as Metáforas
Maria Adélia Aparecida de Souza
O que a Geografia tem a dizer sobre a felicidade? Pergunta que para muitos é até ridícula. Nossa disciplina só lida com coisa séria! disseram-me muitos. Ledo engano! A Geografia tem muito o que dizer sobre a felicidade, extraordinário tema que, felizmente, hoje, é discutido em algumas rodas intelectuais.
Neste início de século, tão prenhe de ameaças de toda ordem, sobretudo da guerra, não é sem razão que a discussão sobre a felicidade volta à baila.
Imaginei que, desde quando a Geografia cuidava da descrição da paisagem natural, quando ela ainda era objeto de preocupação dos românticos, quando paisagem se confundia com o belo, com a natureza, ela estava ligada à felicidade. Hoje sabemos que a paisagem, pelo menos para a Geografia, é produto do trabalho humano, onde nem sempre, nem a beleza, nem felicidade, estão presentes. Importante destacar que as paisagens hoje estão completamente humanizadas, mesmo quando não tem, efetivamente, a presença humana. O sistema de telemática e a capacidade que alguns tem de monitorar a Terra, armazenando dados ou fazendo, inclusive, implodir torres imensas, transformou a paisagem em um poderoso produto também da insanidade humana.
Falo das paisagens das periferias das grandes metrópoles, dos centros abandonados das cidades, da guerra, hoje também espetáculo televisivo. Claro que, em sua aparência, a felicidade aí não está, aquela felicidade objetiva, como diria Kant. A paisagem moderna, produto acabado do iluminismo, para quem o bem estar e, por conseguinte, a felicidade surgiria com o advento da conquista, pela humanidade, do progresso técnico e científico. Ah! Estes tempos tristes, como diria Hannah Arendt! Ah! Estes tempos infelizes, como diriam os pessimistas de hoje que ainda não ouviram falar no período popular da história.
Mas, nestas paisagens tristes, é claro a felicidade também brota. A felicidade subjetiva, como também diria Kant, aquela que habita dentro de cada um e que, forçosamente, sempre se manifesta: com a chegada de um filho, com a alegria da festa, com a possibilidade do emprego, com a ajuda necessária e generosa, com o encontro, enfim. Eis uma forma de felicidade indestrutível, aquela do encontro, aquela da emoção.
A Geografia, ciência que se coloca em pé, com rigor, identidade e maturidade no século XIX, sempre esteve assentada em uma imensa racionalidade. Então, como falar de emoção? Felizmente os geógrafos hoje estudam sistemas de objetos e sistemas de ação (emoção) indissociavelmente construídos. A racionalidade pura (a descrição) pouco a pouco abandona a Geografia.
Durante todo este tempo, o objeto da geografia, a descrição das paisagens era (e tristemente ainda o é) feita como se ela brotasse, inodora, assexuada, expondo-se ao relato e a descrição, por vezes com uma pitadinha de ideologia, que a confunde, e de política, que certamente a qualifica.
Mas a felicidade, então, também se transformava em algo racional, desprovida de emoção. Ela aderia a um discurso generalista, metafórico e matematizante, bem a gosto do final do século XIX e de todo o século XX. Esta visão certamente será derrotada pelos bons ventos que sopram diante do limite atingido pela racionalidade iluminista e pela necessidade de se substituir a quantidade pela qualidade, a razão pela emoção, na análise do processo social. Ou, cientificamente falando, a racionalidade econômica pela razão política, onde a emoção é o ingrediente mais precioso que carrega, potencialmente, a idéia de felicidade. Ser feliz é sentimento, é pura emoção.
Mas como a Geografia Nova e as demais ciências sociais: a economia, a antropologia, a sociologia, a política e seus instrumentais metodológicos falam da felicidade objetiva?
O texto criado para tanto tem sido metafórico e quantitativo, numérico. Não importa que eles não resistam a uma argumentação mais profunda. Afinal, quem discute hoje um argumento profundo? Todos são apresentados, pois pagos a preço de ouro, como verdade, pelas instituições internacionais.
Vejamos alguns deles. Comecemos pelo mais atual e universalmente adotado: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Paremos para pensar sobre o que é desenvolvimento humano. É ter tudo aquilo que o Ocidente imaginou que a humanidade deveria ter? É aquilo que dá dignidade humana, não desenvolvimento? É ter todas as condições materiais de reprodução da vida: um abrigo, comida, saúde e educação? Ter luz elétrica, televisão, geladeira, sofás, computadores, ar condicionado, ''renda per capita'' elevada (outra matematização), automóvel? Quanto maior o índice de felicidade de seu povo. Eis uma medida da felicidade objetiva.
Todos usam o IDH para reclamar ou usufruir de algo em busca da felicidade. Há países, objetivamente falando, que apresentam o IDH alto e que seu povo, também objetivamente falando, possa ser infeliz? Alguns países, além de sua felicidade ser medida por este índice, resolveram, nestes tempos de muda, matematizar ainda mais o mundo: fala-se em índices de risco. O risco Brasil, por exemplo, produzido por instituições financeiras e de assessoria internacional, quanto desassossego traz a alguns poucos brasileiros, aqueles que correm riscos, obviamente.
Mas índices, a quem interessam? Àqueles que desejam a felicidade objetiva ou subjetiva?
Como se a matematização não bastasse, metáforas são inventadas para reforçá-las. Nelas está implícita a ideia de felicidade objetiva, criada pelas condições requeridas por aqueles que dirigem o mundo. Vejamos as metáforas de hoje: desenvolvimento sustentável, segurança alimentar, globalização.
O que é a sustentabilidade? Manual de bom comportamento empresarial ou social? Como tê-la em uma sociedade injusta, corrompida e sob ameaça de toda ordem? O discurso do desenvolvimento sustentável, que subentende a felicidade, afinal é o que, além de mero discurso metafórico? E, hoje, eles se esgotam mais rapidamente do que ontem. Discursos se fazem e se desfazem, ao sabor da política.
Como pode haver sustentabilidade em um mundo movido pela desigualdade, ou concorrência, competitividade e se preferirem, pela escassez. O que é que se sustenta, ou melhor, onde está a felicidade em mundo ameaçado por um desemprego crônico, hoje já assumido por todas as instâncias de negociação mundial, seja no Rio de Janeiro, em Washington ou em Davos e até mesmo em Porto Alegre!
E o cinismo da segurança alimentar? Há que se reler a parábola da multiplicação dos pães, para entender sobre a fome! Em um mundo que dispõe de todos os meios tecnológicos e biotecnológicos para nutrir a humanidade, mas onde a fome crônica, estrutural e mesmo a episódica, cada vez mais ronda tantos, como usar tal conceito, a não ser quando o relacionamos ao mundo da produção ou do assistencialismo? Não há fome, portanto há felicidade, quando não há esmola. Quando se aprende a pescar.
Metáforas e índices que dificultam a compreensão dos processos reais do mundo e a busca da felicidade. Metáforas são simplesmente metáforas, isto é, dizem respeito ao concretamente inexistente.
Maria Adélia Aparecida de Souza é professora titular de Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) e professora convidada da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).