REPRESSÃO À LITERATURA PERIFÉRICA NA FLIP 2012
Por Renan Inquérito e Rodrigo Ciríaco
(*) Renan Inquérito é
músico, poeta, educador, geógrafo e integrante do grupo de rap Inquérito;Rodrigo Ciríaco é educador, escritor, integrante do
coletivo cultural Os Mesquiteiros.
acesso em 03/08/2012 as 13h
“Vendo pó! Vendo pó… Vendo pó…esia!
Tem papel de 10, papel de 15, papel de 20, com dedicatória do autor, ainda
vivo.” Eram essas frases que nós, Renan Inquérito e Rodrigo Ciríaco, gritávamos
no megafone enquanto andávamos pelas ruas de Paraty (RJ) na 10ª edição do
Festival Literário de Paraty (Flip), a maior festa literária do país. Megafone
numa mão, livros na outra, e entre curiosos e assustados íamos vendendo nossos
livros no maior estilo guerrilha, indo pra cima do povo, buscando leitor até
onde não tinha. Uns achavam engraçado, interessante, outros nem tanto.
O fato é que estávamos ali
representando os escritores independentes, periféricos desse país, escritores
sem editora, que fazem das ruas seu stand. Enquanto a Flip tinha a sua livraria
oficial, a Livraria da Vila, a gente levou um pouco da nossa livraria oficiosa,
a Livraria da Vela: Fa-Vela!
Logo de início paramos perto de uma
ponte, uma via pública na parte central do evento e começamos a recitar poesias
aos que passavam. O sarau improvisado logo foi batizado de “Sarau da Ponte” –
lembranças aos Maloqueiristas.
Tudo ia bem até o segundo dia,
quando um fiscal da Prefeitura, acompanhado de um policial nos abordou dizendo
que era proibido comercializar livros daquela maneira, estávamos ferindo a Lei
Orgânica do Município, e que era pra gente parar porque se não aquilo ia virar
“uma feira”, além do que, estávamos fazendo apologia às drogas porque dizíamos
que vendíamos PÓ.
Explicamos: “vendemos pó-esia,
irmão”. Mas o policial militar, que se identificou juntamente a fiscais da
prefeitura, seguranças e organizadores do evento, disse que o problemas estava
na “interpretação” – ao que retrucamos: Drummond, homenageado da Flip 2012,
escreveu: “No meio do caminho tinha uma pedra”, ele estava vendendo crack? (Assista
ao vídeo “Biqueira Literária”)
Pra evitar um transtorno maior,
decidimos circular, fomos vender os livros em outro lugar, longe dos olhos dos
fiscais, mas no outro dia, lá estávamos na ‘bendita’ ponte, e logo eles
chegaram de novo, dessa vez com reforços, até porque estávamos armados com
livros de alto calibre: #PoucasPalavras, Te Pego Lá Fora, Pode Pá Que é Nóis
que Tá, 100 Mágoas, nossos trabalhos, considerados por eles drogas de alta teor
de intoxicação e periculosidade.
Ameaçaram apreender os livros caso
não saíssemos do local e ainda ameaçaram nos enquadrar por desacato à
autoridade, disseram que não tínhamos alvará de “funcionamento” – nós
questionamos: desde quando um escritor, detentor dos direitos autorais do seu
livro, estando em uma festa literária, com um produto cultural, em via pública
precisa de “alvará” para trabalhar?
Ainda mais se tratando de um país
que tem, em todo o seu território nacional, menos livrarias funcionando do que
apenas uma única cidade, como Buenos Aires na Argentina! Nós deveríamos receber
apoio, incentivo e não ameaças, repressão, sermos constrangidos!
Para resumir: na maior festa
literária do país, a prefeitura de Paraty (RJ), a polícia do Rio de Janeiro, os
organizadores da Flip 2012, agiram como sempre fizeram: ignorando os escritores
marginais, independentes e suas respectivas manifestações, expressões
artísticas que aconteciam nas ruas, legitimando apenas a literatura passiva,
‘official’, dos stands, das grandes editoras, em um evento onde pagava-se R$ 40
para assistir os debates, em uma festa financiada por uma lei de incentivo à
cultura e patrocinada por um banco que quer pintar a cidade toda de laranja.
Liberdade de expressão, direito de
ir e vir: ZERO! Quer saber? Se formos seguir a letra da lei, quem não tem alvará
são eles! Eles que não tem alvará para nos entupir apenas com livros da chamada
“literatura oficial”, com marcadores de páginas cheios de logomarcas famosas
muitas vezes financiadas com recursos públicos. Interferindo e alterando
totalmente a configuração da cidade, tombada pelo Patrimônio Histórico da
Humanidade.
Será que a Flip pediu alvará de
funcionamento para os índios e quilombolas que vivem em Paraty antes mesmo da
chegada do homem branco? Não vi nenhum estande pros índios e quilombolas venderem
seus artesanatos, estes ficavam no chão, no meio da rua se quisessem. E
pudessem, já que a repressão dos fiscais, também atingia a eles, algumas vezes.
A passarela da poesia, a “Paraty
Fashion Week”, parecia mais uma verdadeira balada literária – perdoe-nos o
trocadilho, Marcelino Freire -, e nós, os escritores marginais, periféricos,
independentes, fomos lá pra preservar o patrimônio histórico do povo
brasileiro, o inconformismo e a coragem que ainda nos dá uma ponta de
esperança. Mas como diriam os Racionais MCs: “Nossos motivos pra lutar ainda
são os mesmos”.
Todos os artistas de rua, poetas e
escritores frequentadores das quebradas dos saraus, da literatura marginal,
independente, viva, da cultura periférica fazem muito, muito mais para a
diversidade e riqueza de nossa cultura, do que muitos bancos privados,
prefeituras vendidas e polícias repressivas. Não precisamos de autorização nem
de alvará para o nosso funcionamento. A nossa cultura é livre. E as ruas pedem
livros!