sexta-feira, 3 de agosto de 2012


REPRESSÃO À LITERATURA PERIFÉRICA NA FLIP 2012

Por Renan Inquérito e Rodrigo Ciríaco
(*) Renan Inquérito é músico, poeta, educador, geógrafo e integrante do grupo de rap Inquérito;Rodrigo Ciríaco é educador, escritor, integrante do coletivo cultural Os Mesquiteiros.

acesso em 03/08/2012 as 13h


“Vendo pó! Vendo pó… Vendo pó…esia! Tem papel de 10, papel de 15, papel de 20, com dedicatória do autor, ainda vivo.” Eram essas frases que nós, Renan Inquérito e Rodrigo Ciríaco, gritávamos no megafone enquanto andávamos pelas ruas de Paraty (RJ) na 10ª edição do Festival Literário de Paraty (Flip), a maior festa literária do país. Megafone numa mão, livros na outra, e entre curiosos e assustados íamos vendendo nossos livros no maior estilo guerrilha, indo pra cima do povo, buscando leitor até onde não tinha. Uns achavam engraçado, interessante, outros nem tanto.
O fato é que estávamos ali representando os escritores independentes, periféricos desse país, escritores sem editora, que fazem das ruas seu stand. Enquanto a Flip tinha a sua livraria oficial, a Livraria da Vila, a gente levou um pouco da nossa livraria oficiosa, a Livraria da Vela: Fa-Vela!
Logo de início paramos perto de uma ponte, uma via pública na parte central do evento e começamos a recitar poesias aos que passavam. O sarau improvisado logo foi batizado de “Sarau da Ponte” – lembranças aos Maloqueiristas.
Tudo ia bem até o segundo dia, quando um fiscal da Prefeitura, acompanhado de um policial nos abordou dizendo que era proibido comercializar livros daquela maneira, estávamos ferindo a Lei Orgânica do Município, e que era pra gente parar porque se não aquilo ia virar “uma feira”, além do que, estávamos fazendo apologia às drogas porque dizíamos que vendíamos PÓ.
Explicamos: “vendemos pó-esia, irmão”. Mas o policial militar, que se identificou juntamente a fiscais da prefeitura, seguranças e organizadores do evento, disse que o problemas estava na “interpretação” – ao que retrucamos: Drummond, homenageado da Flip 2012, escreveu: “No meio do caminho tinha uma pedra”, ele estava vendendo crack? (Assista ao vídeo “Biqueira Literária”)
Pra evitar um transtorno maior, decidimos circular, fomos vender os livros em outro lugar, longe dos olhos dos fiscais, mas no outro dia, lá estávamos na ‘bendita’ ponte, e logo eles chegaram de novo, dessa vez com reforços, até porque estávamos armados com livros de alto calibre: #PoucasPalavras, Te Pego Lá Fora, Pode Pá Que é Nóis que Tá, 100 Mágoas, nossos trabalhos, considerados por eles drogas de alta teor de intoxicação e periculosidade.
Ameaçaram apreender os livros caso não saíssemos do local e ainda ameaçaram nos enquadrar por desacato à autoridade, disseram que não tínhamos alvará de “funcionamento” – nós questionamos: desde quando um escritor, detentor dos direitos autorais do seu livro, estando em uma festa literária, com um produto cultural, em via pública precisa de “alvará” para trabalhar?
Ainda mais se tratando de um país que tem, em todo o seu território nacional, menos livrarias funcionando do que apenas uma única cidade, como Buenos Aires na Argentina! Nós deveríamos receber apoio, incentivo e não ameaças, repressão, sermos constrangidos!
Para resumir: na maior festa literária do país, a prefeitura de Paraty (RJ), a polícia do Rio de Janeiro, os organizadores da Flip 2012, agiram como sempre fizeram: ignorando os escritores marginais, independentes e suas respectivas manifestações, expressões artísticas que aconteciam nas ruas, legitimando apenas a literatura passiva, ‘official’, dos stands, das grandes editoras, em um evento onde pagava-se R$ 40 para assistir os debates, em uma festa financiada por uma lei de incentivo à cultura e patrocinada por um banco que quer pintar a cidade toda de laranja.
Liberdade de expressão, direito de ir e vir: ZERO! Quer saber? Se formos seguir a letra da lei, quem não tem alvará são eles! Eles que não tem alvará para nos entupir apenas com livros da chamada “literatura oficial”, com marcadores de páginas cheios de logomarcas famosas muitas vezes financiadas com recursos públicos. Interferindo e alterando totalmente a configuração da cidade, tombada pelo Patrimônio Histórico da Humanidade.
Será que a Flip pediu alvará de funcionamento para os índios e quilombolas que vivem em Paraty antes mesmo da chegada do homem branco? Não vi nenhum estande pros índios e quilombolas venderem seus artesanatos, estes ficavam no chão, no meio da rua se quisessem. E pudessem, já que a repressão dos fiscais, também atingia a eles, algumas vezes.
A passarela da poesia, a “Paraty Fashion Week”, parecia mais uma verdadeira balada literária – perdoe-nos o trocadilho, Marcelino Freire -, e nós, os escritores marginais, periféricos, independentes, fomos lá pra preservar o patrimônio histórico do povo brasileiro, o inconformismo e a coragem que ainda nos dá uma ponta de esperança. Mas como diriam os Racionais MCs: “Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos”.
Todos os artistas de rua, poetas e escritores frequentadores das quebradas dos saraus, da literatura marginal, independente, viva, da cultura periférica fazem muito, muito mais para a diversidade e riqueza de nossa cultura, do que muitos bancos privados, prefeituras vendidas e polícias repressivas. Não precisamos de autorização nem de alvará para o nosso funcionamento. A nossa cultura é livre. E as ruas pedem livros!